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Regulação das plataformas digitais, lobby e qualidade da democracia




Como se sabe, a votação do PL 2630/2020 na Câmara dos Deputados, prevista para terça-feira, 02 de maio, foi adiada – especula-se que por duas semanas, mas não se sabe ao certo se será possível, nem quanto tempo levará, para se limpar o terreno no qual esse debate deveria ser travado. Isso porque o debate em torno da regulação das plataformas digitais, como se viu nas últimas semanas, foi total e propositadamente contaminado. Sem tomar o caminho das minudências, é possível resumir esse processo em três aspectos principais.

O primeiro deles tem a ver com o enquadramento dado ao problema. Como notou Pedro Doria, ao atribuir ao projeto o apelido de “PL das Fake News”, seus defensores ofereceram aos adversários a narrativa de que o objetivo da empreitada seria definir o que é verdade e o que não é. O próprio governo irrigou essa fogueira com gasolina ao tentar aproveitar a oportunidade para concretizar uma ideia fixa de parte de sua militância mais aguerrida: criar um órgão para definir o que pode e o que não pode ser publicado. Daí para que os detratores do projeto alardearem que se tentava criar um “Ministério da Verdade” – evocando um George Orwell lido às pressas, se tanto – foi um pulo. Quando o governo concordou em retirar essa estrovenga do texto o estrago já estava feito.

Esse problema de enquadramento conduziu a outro de ordem estratégica. O objetivo principal do PL2630/2020, assim como o de propostas semelhantes em outros países, é regular as plataformas digitais. Hoje, à diferença dos veículos de imprensa, plataformas como Google, Meta e Twitter não podem ser corresponsabilizadas por conteúdos criminosos produzidos e ou veiculados por seus usuários – pois o artigo 19 do Marco Civil da Internet veda, salvo em caso de ordem judicial específica. Isso fez com que o Twitter se recusasse a excluir fotos de assassinos de crianças em escolas, por exemplo, argumentando que a prática não contraria suas políticas de uso da rede; e encorajou o Telegram a se recusar a cumprir decisão judicial.

O terceiro problema a ser destacado é que parte importante da classe política nacional aderiu abertamente à disseminação acelerada de desinformação por meio de mídias sociais como método principal de se fazer política. E não se trata de ignorar que mentiras mais ou menos sinceras (ilusões, fantasias, falácias, chamarizes etc.) fazem parte da cena política desde sempre. No contexto atual, a conversa é outra: teorias conspiratórias, algoritmos, ciência comportamental e de dados vem sendo utilizadas para manipular deliberadamente o debate público e minar as bases de sustentação do que conhecemos como democracia.

Tudo somado, esse contexto favoreceu a união entre os representantes dos interesses das grandes plataformas digitais (as chamadas bigtechs) com parcelas da classe política que utilizam a propagação deliberada e organizada de desinformação como principal expediente de suas atividades profissionais. Até o discurso estava dado: enquanto a classe política condenava a criação de um “Ministério da Verdade”, as bigtechs passaram a defender de maneira mais ou menos explícita que o PL 2630 poderia piorar a qualidade da internet usada pelos brasileiros.


Entendendo o lobby das plataformas digitais no âmbito do PL 2630/2020


A principal dificuldade para que se consiga tornar as plataformas digitais corresponsáveis pelos conteúdos criminosos veiculados por seus usuários tem a ver com o fato de que isso atinge o cerne dos modelos de negócio dessas empresas – ou seja, sua principal fonte de receita. Em outros termos, mudar as regras é tão difícil porque esse negócio é muito lucrativo com as regras atuais. Compreender isso exige que se entenda como os conteúdos (verdadeiros ou falsos) se propagam na internet.

A lógica que impulsiona os negócios na rede é a da segmentação de audiência: em vez de um anunciante investir grandes quantidades de dinheiro para produzir campanhas publicitárias convencionais e veiculá-las em meios de comunicação tradicionais, ele opta por produzir anúncios sob medida, na internet, para uma audiência previamente segmentada.

Esse processo de segmentação se tornou possível porque todo tipo de plataforma online – mídias sociais, servidores de busca, varejistas e compartilhadores de conteúdo sob demanda – operam com base em um processo de filtragem de bolhas: os dados que fornecemos quando utilizamos essas plataformas são processados por algoritmos que nos separam em grupos com diferentes perfis, com base em critérios como nossas buscas na rede, hábitos de consumo, lugares que visitamos, conteúdos que curtimos e compartilhamos, vídeos que assistimos, livros que lemos etc.

Uma vez segmentadas, essas bolhas de audiência são constantemente estimuladas para fazer duas coisas: manter os usuários navegando pelo maior tempo possível; e gerar reações (cliques, seguidores, curtidas, compartilhamentos etc.) Isso porque esses dois fatores têm enorme potencial para geração de receitas: por meio da venda de anúncios publicitários com base no potencial de exposição e de influência do canal, da monetização de dados, venda direta de produtos online e assim por diante.

É isso que Craig Silverman, da plataforma BuzzFeed, chama de “economia da atenção”. Não é difícil perceber o potencial econômico desse negócio: empresas de consultoria da área estimam que a chamada economia digital responde atualmente por cerca de um quarto (25%) da economia global.


E o que isso tem a ver com o debate sobre a regulação das plataformas digitais? Tudo. Como a psicologia social e neurociência não se cansam de mostrar, nós reagimos de maneira muito mais intensa a situações inesperadas, chocantes ou mesmo bizarras, do que a trivialidades cotidianas. Isso quer dizer que uma narrativa simples e equivocada sobre um evento qualquer tem um potencial mobilizador muito maior do que sua descrição factual.

Dito de maneira direta: se o objetivo for manter o usuário online e ampliar suas reações aos conteúdos aos quais ele se expõe (e esses são os objetivos principais dessas plataformas), a desinformação (conteúdos viesados ou falsos) é muito mais eficaz do que a informação. E qualquer empresa que opera na internet sabe disso – incluindo aquelas que atuam no mercado eleitoral.

Por isso as tais bigtechs agiram tão intensamente para nublar o debate em torno do PL 2630/2020 na Câmara dos Deputados: se a medida fosse aprovada e as plataformas se tornassem corresponsáveis pelos conteúdos muitas vezes criminosos veiculados por seus usuários, precisam agir para impedir a disseminação desses conteúdos, em vez de ampliá-la e ganhar dinheiro com isso.


A pressão das bigtechs e a regulação do

lobby no Brasil


A pressão pouco transparente e considerada abusiva inclusive pela justiça brasileira por parte das plataformas digitais, no caso do PL 2630, trouxe à tona, uma vez mais, questionamentos acerca dos limites para a ação de lobby em sociedades democráticas. Trata-se de um instrumento direto de representação de interesses, que pode aumentar a participação social no processo decisório, tornando o processo de produção de políticas públicas mais responsivo.

Para que isso seja possível, é preciso criar mecanismos para, por exemplo, evitar o monopólio da influência, democratizar o acesso ao processo decisório e torná-lo mais transparente. Em outros termos, a prática precisa ser cuidadosamente regulada. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), esse processo deve ser orientado por três princípios principais:


  • Transparência: dar notoriedade às intenções dos lobistas e aos beneficiários da atividade de lobby.


  • Integridade: exigir que as condutas de autoridades públicas e de lobistas sigam princípios éticos claros e rigorosos, a fim de evitar práticas ilícitas, prevenir conflito de interesses e o uso indevido de informações privilegiadas.


  • Acesso: assegurar acesso amplo e irrestrito da sociedade ao processo de representação de interesses; incrementar a participação social no processo decisório, evitando que a produção de políticas públicas seja capturada por interesses particulares.

O lobby enquanto instrumento de representação de interesses já foi regulado em diversos países como Estados Unidos, Austrália, Alemanha, França, Israel e Reino Unido. No Brasil, no entanto, o processo se arrasta há mais de três décadas – desde que o então senador Marco Maciel apresentou o PLS 203/1989, que foi aprovado no Plenário do Senado e enviado à Câmara dos Deputados, onde permanece até hoje. Nas décadas seguintes, o tema voltaria à pauta das duas Casas Legislativas, mas sem que houvesse uma definição.

Uma dessas ocasiões em que o assunto voltou a ser calorosamente debatido foi durante a “CPI da Pandemia” – que investigara, entre outras coisas, a obscura intermediação de um representante da Precisa Medicamentos junto ao governo brasileiro, no auge da pandemia de covid-19. Mas a repercussão não foi suficiente para que os parlamentares votassem o PL 4391/2021, que estava pronto para ir a Plenário, mas acabou arquivado.

Enquanto a regulação não ocorre, o lobby segue fazendo parte do cotidiano de Brasília, como se vira no caso da regulação das plataformas digitais, mas sem a exigência legal de que a prática seja orientada por princípios como transparência, integridade e acesso. E continuamos perdendo a oportunidade de melhorar a qualidade da nossa democracia.


Wellington Nunes, cientista político e consultor sênior da ARW

QUER SABER MAIS? CONFIRA ESSE MATERIAL ESPECIAL, LIVRE PARA DOWNLOAD -> Report Fake News

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